Entrevistas

Conquistas e desafios da produção e uso de evidências para a promoção dos direitos das pessoas LGBTQIA+ no Brasil

04 jun 2024

Esta entrevista faz parte do projeto ‘Resonating voices: Escutando as vozes das/os usuárias/os de evidências na região da América Latina e Caribe (LAC)’. Este projeto é realizado graças à colaboração entre o Hub LAC, como executor, e a Overton, como financiador. Nesta conversa, o Hub LAC fala com Dayana Brunetto do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. 

Dayana Brunetto é professora, pesquisadora e ativista com mestrado, doutorado e pós-doutorado em educação pela UFPR. Faz parte do Comitê Científico da ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Atualmente, é Coordenadora Geral de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil.

Trabalhar na nova Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ tem sido uma experiência desafiadora e gratificante ao mesmo tempo. É a primeira secretaria nacional dos direitos das pessoas LGBTQIA+ no mundo. Então ela está muito em foco, tanto como alvo dos ataques do conservadorismo, quanto como referência para outros países e lugares do mundo, por ser a primeira estrutura em segundo escalão de governo para cuidar dessas políticas, das pessoas e promover a transformação de suas vidas. 

Na nossa secretaria, enfrentamos uma série de questões prioritárias que impactam diretamente nosso trabalho, nossos objetivos e principalmente a vida das pessoas LGBTQIA+. Uma delas é a ausência ou a insuficiência e instabilidade dos dados disponíveis. Apesar dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE abordarem a orientação sexual, geralmente quem responde é a pessoa responsável pelo domicílio daquela família. Então, caso seja um pai, uma mãe ou responsável lesbofóbica/o, por exemplo, eles não vão falar que a filha é lésbica, corroborando para uma subnotificação desses dados. 

Outro problema prioritário é o enfrentamento dos efeitos do poder do discurso de ódio na sociedade, especialmente em relação às pessoas LGBTQIA+. A disseminação do factóide “ideologia de gênero” tem prejudicado a abordagem de gênero por professoras e professores, pesquisadoras e pesquisadores, levando à desvalorização das pesquisas e à perseguição de profissionais da área, além de incentivar as violências e a violação de direitos. A “ideologia de gênero” é um discurso mentiroso e criminoso, porque promete proteger as crianças, mas, na verdade protege o estuprador. Uma vez que a escola pode ser o único espaço com o qual a criança pode contar para denunciar as violências sexuais que sofre em casa. Quando você tira as discussões sobre gênero e sexualidade numa perspectiva de Direitos Humanos  da escola, retira também a possibilidade de algum apoio a criança e adolescente vítima de violência sexual.

Um dos nossos principais esforços é a produção de dados estáveis e confiáveis. Logo, elaboramos um formulário padrão, com questões mínimas e alternativas padronizadas para a coleta de dados sobre pessoas LGBTQIA+. Este formulário foi referendado pelo Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ e pode ser utilizado por órgãos públicos e por pesquisadoras/es e institutos para coletar informações relevantes sobre esses grupos. Estamos trabalhando em uma nota técnica, com um parecer, a ser encaminhada para todos os órgãos públicos que coletam dados, com as questões, para que haja implementação. No entanto, ainda encontramos obstáculos institucionais e por vezes resistência por parte daqueles que não compartilham dos nossos objetivos e da valorização dos direitos humanos de todas as pessoas.

Nesse processo, buscamos diferentes fontes de informações e evidências científicas para embasar nossas decisões. Também temos um trabalho muito interligado com o Observatório Nacional dos Direitos Humanos – ObservaDH e com a ReneDH – Rede Nacional de Evidências em Direitos Humanos, instâncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania – MDHC. Uma das abordagens que temos adotado é trabalhar em parceria com consultorias especializadas. Acreditamos que essas parcerias podem preencher lacunas importantes e nos fornecer insights valiosos. 

Um exemplo significativo de pesquisas realizadas por movimentos sociais organizados é o I LesboCenso Nacional, uma pesquisa ativista-acadêmica fundamental para estabelecer uma agenda governamental concreta, culminando na criação da Agenda Nacional de Enfrentamento à Lesbofobia e ao Lesbo-ódio. Uma parceria interministerial em conjunto com o Ministério da Igualdade Racial, Ministério das Mulheres e com o Ministério dos Povos Indígenas. 

Com 21.050 respostas em todo o país, o censo revelou dados impactantes, indicando que oito em cada dez lésbicas no Brasil já sofreram lesbofobia, por exemplo. Além disso, aproximadamente 7 em cada 10 já foram estupradas, com ou sem penetração. Esses resultados têm impulsionado debates e ações em áreas como saúde, educação, segurança pública, assistência social e cultura. A fase em andamento envolve entrevistas para aprofundar os dados quantitativos. Na última fase da pesquisa será realizada formação política para promover políticas públicas informadas por evidências.

Instituímos também o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, com 38 representações, sendo 19 dos movimentos sociais e 19 governamentais. Acreditamos que a política pública precisa da participação social de quem está no território na produção das evidências. Portanto, estabelecemos um diálogo contínuo entre os movimentos sociais e o governo, garantindo que as políticas propostas sejam assertivas, viáveis e eficazes. 

Barreiras

Uma das principais barreiras que enfrentamos são os efeitos do discurso de ódio na sociedade. Esse discurso permeia diversos espaços, incluindo a gestão pública, a universidade e a escola, tornando mais difícil a implementação de políticas informadas em evidências nesta área. Essa realidade é especialmente dolorosa para quem trabalha com direitos humanos, pois confrontamos diariamente a negação do direito à igualdade e ao respeito à dignidade humana de todas as pessoas. 

Outro desafio significativo é o orçamento restrito, que impacta não apenas a obtenção de evidências, mas todas as nossas atividades. No entanto, mesmo com recursos limitados, buscamos realizar formações, iniciativas e pactuações que promovam o enfrentamento às violências contra as pessoas LGBTQIA+ e outras formas de discriminação, bem como promovam a valorização dos direitos humanos dessas pessoas.

A pactuação para a produção de dados também acaba sendo uma barreira, pois ainda temos muita confusão com os principais conceitos que sistematizam minimamente as nossas subjetividades, como sujeitas/es/os LGBTQIA+, além de que a nossa pauta não é consensual por uma frente ampla de atrizes e atores políticos. Logo, essa confusão teórica, epistemológica e política, soma-se à questão do conservadorismo, do moralismo e dos efeitos de poder dos discursos de ódio nas realidades territoriais, o que acaba dificultando a coleta de dados e, consequentemente, a produção das evidências e das análises..

Facilitadores

Apesar dessas barreiras, reconheço que existem oportunidades para avançar nesse processo. Uma delas é o fortalecimento das parcerias com movimentos sociais, academia e organismos internacionais, que pode fornecer apoio e expertise na produção e utilização de evidências. Além disso, acreditamos que devemos buscar alternativas criativas para institucionalizar práticas informadas em evidências, mesmo diante da falta de apoio legislativo.

Ainda há muito trabalho a ser feito para superar essas barreiras e garantir que nossas políticas sejam informadas por evidências sólidas e direcionadas às necessidades reais da população. Acreditamos que, com uma abordagem colaborativa e informada por evidências, podemos fazer progressos significativos na promoção, proteção e defesa dos direitos e no enfrentamento das violências, violações de direitos e desigualdades.

Em relação às/aos pesquisadoras/es é importante que estabeleçam um diálogo efetivo com as pessoas e comunidades afetadas pelo tema de pesquisa, mesmo que não sejam necessariamente parte desse grupo. Não é preciso ser um sujeito específico para pesquisar sobre determinado assunto, mas é essencial ouvir e compreender as experiências e perspectivas das pessoas envolvidas. As/Os pesquisadoras/es precisam estar abertas/os e receptivas/os às mudanças e movimentos da sociedade, adaptando-se e aprendendo com essas transformações contínuas.

Também existe a necessidade de colaboração entre pesquisadoras/es e tomadoras/es de decisão em todos os níveis, desde o federal até os níveis locais, para garantir que as políticas e decisões sejam informadas por evidências robustas e relevantes.

Já para as/os tomadoras/es de decisão, é preciso que se tenha um compromisso ético-político de oferecer serviços públicos de qualidade e um atendimento ético para todas as pessoas. Isso precisa acontecer pela via do profissionalismo, independentemente das crenças pessoais das/os tomadoras/es de decisão. Além disso, é importante a formação adequada das/os profissionais envolvidas/os em políticas públicas e a necessidade de ouvir e considerar as evidências e as experiências das/os usuárias/os dos serviços públicos para garantir equidade. As decisões tomadas devem ser informadas por evidências e respeitar os direitos humanos de todas as pessoas.

É de suma importância a não violação dos direitos humanos e considerar as consequências profundas de atos discriminatórios, como exclusões, piadas ofensivas e olhares de desprezo, que podem ter impactos sérios, incluindo o suicídio. Portanto, é crucial promover e proteger os direitos humanos em todas as ações e decisões.

Como defensora das “pequenas revoluções”, acredito na importância de transformar espaços e grupos de maneira gradual e constante. A nossa Secretaria tem um compromisso em deixar um legado positivo, e acredito firmemente que investir em evidências e dados é fundamental para alcançar esse objetivo. É uma jornada desafiadora, mas estou determinada a seguir adiante, lutando por um futuro justo e igualitário.


Contato entrevistada: dayana.brunetto@mdh.gov.br